Segundo o dossiê “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras 2022”, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil lidera o ranking de assassinatos contra pessoas transgênero no mundo. Para pesquisar os efeitos da identidade de gênero e orientação sexual na mortalidade dessa população, foi criado o projeto “Efeitos da Identidade (Trans)Gênero e Orientação Sexual sobre a Notificação e Mortalidade por Violências: um estudo de coorte”, coordenado por Ricardo de Mattos. O pesquisador conversa sobre o assunto no primeiro episódio da décima primeira temporada do Uerj Entrevista.

Ricardo de Mattos é vice-diretor da Faculdade de Enfermagem da Uerj e professor no Departamento de Enfermagem de Saúde Pública. Além disso, é membro do grupo temático Violência e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e coordenador do laboratório de pesquisa “Viés” (Violências, Interseccionalidades, Epidemiologia e Sociedade).

Dos 4.639 homicídios registrados pela Transgender Europe (TGEU) entre 2008 e 2022, 1.741 ocorreram no Brasil, acumulando 37,5% de todas as mortes de pessoas transgênero no mundo. Os casos de violência também são recorrentes, seja física, psicológica ou de violação contra os direitos humanos até mesmo na hora do atendimento médico.

No bate-papo, Ricardo de Mattos diz quais experiências no seu trabalho como enfermeiro de saúde pública levaram à análise de que mulheres trans não-heterossexuais têm maior probabilidade de morrer que as demais. O primeiro movimento que levou o professor a refletir sobre a necessidade do projeto foi a ficha de notificação de violência, que é um registro feito por todas as unidades de saúde quando existe suspeita de agressão. Em 2015, houve a inclusão de dois campos na ficha: orientação sexual e identidade de gênero, porém, nas unidades de saúde, de acordo com de Mattos, só é marcado quando são mulheres trans, travestis e homens trans, se for uma pessoa cis nada é assinalado, pois é atribuída pela sociedade uma “normalidade”. A falta de marcação estava causando um prejuízo na qualidade da informação e reproduzindo o fenômeno de identidade de gênero, que é hetero normativo, cis normativo e isso começou a incomodar o professor.

O segundo “gatilho” foi durante o seu pós-doutorado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), quando o pesquisador teve contato com uma supervisora que trabalhava com estatísticas com recorte na população trans. “Foi o primeiro despertar que eu tive. Até que ponto eu estava trabalhando com mulheres ou até que ponto eu estava trabalhando com um grupo específico de mulheres, reproduzindo aquilo mesmo que eu questionava nas minhas investigações”, relembra o coordenador do projeto.

Em um outro estudo intitulado “EVAS: Estudo sobre Violências e Autoavaliação de Saúde de Travestis e Mulheres Transexuais do Rio de Janeiro”, em conjunto com a Fundação Oswaldo Cruz e a Unirio, o vice-diretor da Faculdade de Enfermagem da Uerj teve  acesso a um grupo que investigava óbitos, especificamente a partir da Antra, que vem contabilizando com instituições internacionais a morte de pessoas trans e travestis no Brasil. Estudos realizados no exterior apontam que o risco de pessoas não hétero sofrerem violência e morrerem é muito maior do que de pessoas cis. Portanto, a identidade de gênero combinada com uma orientação sexual distante daquilo considerado “padrão”, influencia para que essas pessoas tenham uma maior probabilidade de morte violenta. Daí nasce o estudo sobre o risco de mortalidade.

O professor Ricardo de Mattos explica que todas as unidades de saúde deveriam prestar o apoio necessário às vítimas trans e travestis que sofrem algum tipo de violência, mas não é o que acontece no dia a dia. Segundo as poucas investigações que existem sobre o tema, uma das principais barreiras ao acesso às unidades de saúde é o desrespeito ao nome social e aos pronomes, que, por muitas vezes, acontece de forma deliberada. Por conta disso, muitas pessoas deixam de procurar ajuda.

Um projeto de lei, proposto pela deputada federal Erika Hilton (Psol-SP), prevê que o Disque 180, serviço telefônico que orienta e encaminha denúncias de violências contra mulheres, possa contar com um canal especializado para acolher mulheres trans e travestis. Em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha também iria se estender a essa população.

O projeto coordenado por Ricardo de Mattos possui dados preliminares. A pesquisa EVAS aponta que cerca de 80% das mulheres entrevistadas no estudo sofreram violência ainda na fase infantil, sendo que 30% delas foram abusadas sexualmente na infância. O trabalho também identificou o termo passabilidade, que é o quanto uma pessoa transgênero ou travesti se assemelha em questão de gestos, comportamento e vestimentas do que a sociedade espera como feminino. O professor cita que alguns teóricos dizem que a identidade de gênero é um processo de imitação, reprodução que acontece antes mesmo do nascimento. “Antes de nascido, a gente já tem atribuição do papel que uma genitália ou que aquele corpo vai ter ao longo da vida”.

O professor Ricardo de Mattos estará na mesa Saúde do Uerj com RJ 2023, no dia 20 de outubro, às 14h.

Ouça, na íntegra, sua participação no primeiro episódio da décima primeira temporada do Uerj Entrevista.